Quando um peixe chora dentro d'água, você percebe?
Talvez seja um texto sobre o Oscar, talvez não.
Em música, síncope é, sobretudo, uma quebra de expectativa, uma nota que se antecipa, que te pega de forma, podemos chamar... desprevenida. Existem dois filmes que foram indicados ao Oscar este ano que, pela maneira como dispõem suas imagens e seus sons, produzem síncopes profundamente perturbadoras no corajoso gesto de acompanhar o ritmo dissonante da História. Na minha opinião, dentro dos títulos que serão lidos em voz alta nessa cerimônia sempre meio décadence avec élégance de Hollywood, esses dois filmes sobre os quais escreverei brevemente são o que melhor conseguem dar conta não somente dos desafios da linguagem cinematográfica hoje, mas fazem isso entendendo que a forma de se contar uma história está sempre, por escolha ou por calculada negligência, atada ao chão da História sobre a qual pisamos.
Os filmes se chamam Sem chão (No other land), de Yuval Abraham, Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal e Trilha sonora para um golpe de estado (Soundtrack to a Coup d'Etat), de Johan Grimonprez.
O que se segue não é um texto crítico que se debruça sobre os filmes para, a partir de alguns critérios, produzir aquilo que chamaríamos de análise. Não. Neste momento, e pensando especificamente a dinâmica do Oscar em si, não quero produzir análises e contribuir para a lógica algorítmica-sem-rítmica da coerência textual. Quero menos ainda dar explicações sobre esses filmes. Vem, Susan Sontag, me ajuda.
- A Palestina -
Porque todas as vezes que a câmera do celular treme em Sem chão, e vemos a imagem borrada, riscada, desfocada, sem conseguir fixar um horizonte, a imagem que grita desesperada porque o corpo que nela se estende precisa se mover em violento desespero contra a violência que se impõe sobre ele, a única coisa que resta é tremer junto. Tudo que excede a essa capacidade de se contaminar opticamente e hapticamente com a imagem é supérfluo.
Ou começamos a sentir as coisas “de dentro do grão do solo”, como escreve a artista palestina Oraib Toukan nesse incrível texto que tive o prazer de traduzir para o português, ou já não faz mais sentido falar da Palestina, do Congo, do Brasil.
Sem chão (aliás, queria mandar os parabéns pra quem teve a ideia de traduzir o título do filme nessa combinação polissêmica) é um filme feito por quatro pessoas, mas protagonizado por dois sujeitos cujo encontro se dá por aquilo que estamos gradualmente perdendo, qualquer seja o alinhamento político: a qualidade de se encontrar nas diferenças.
Nesse sentido, podemos até dizer que o motor do filme é o encontro entre Basel, jovem palestino que documenta (até hoje) a sádica violência colonial diária do estado de Israel no território da Cisjordânia e Yuval, jovem israelense que tenta, com Basel, fazer com que essas imagens cheguem a mais pessoas e, mais audaciosamente, cheguem à mídia israelense. Mas não é exatamente isso. Ou pelo menos não só isso. O que move o filme é a disposição em não desistir. Tudo diante do que a equipe do filme consegue registrar é cansaço, frustração e, sobretudo, violência. Pessoas tendo suas casas tomadas, suas escolas destruídas e, em alguns casos, suas vidas tiradas assim no seco som do disparo de um fuzil. E mesmo diante de tudo isso, diante até de uma certa ingenuidade de Yuval em tentar se engajar na luta a partir de um senso de urgência das coisas, o filme persiste.
A luta, Basel lembra como quem já carregasse no corpo o Sumud de várias gerações, exige paciência. Basel, Yuval e, mais importante, a comunidade palestina ao redor, persistem. Não sem raiva, não sem grito, não sem choro, mas sempre com predisposição ao embate. Um dos momentos mais bonitos do filme, aliás, acontece entre Yuval e um dos outros quatro diretores: Hamdan Ballal. Ballal vive na mesma vila de Basel. Diante de Yuval, ele desafaba:
“Como podemos seguir amigos se você vem aqui... poderia ser um irmão ou amigo seu destruindo nossas casas. Acha que dá pra continuar? Eu vou continuar vendo destruírem nossas casas. Reconstruímos, destroem, reconstruímos. O sentido da minha vida é conseguir ter uma casa.”
A câmera de Rachel Szor filma essa conversa tentando dar centralidade a Ballal, ao mesmo tempo em que, pela lateralidade, observa a reação de Yuval.
A filha de Ballal intervém: “pai, por que não param de brigar?”
E aí acontece uma coisa incrível. Yuval, de costas pra gente, diz: “mas eu quero que isso pare!”
No que Ballal olha rapidamente para a câmera, ou seja, para a outra figura israelense do filme, e responde da maneira mais palestina possível: “Não me venha com essa bobagem”, recomeça a discussão até que um outro sujeito pede pra pararem porque precisa de Ballal pra ajudar a pegar um forno no vizinho. Ballal chama Yuval pra ajudar a pegar o forno e, claro, seguir discutindo com ele: “Venha Yuval, vamos continuar” e lá seguem os dois. Pra pegar o forno. E pra não esquecer que é preciso discutir, dialogar até onde der.
- O Congo –
“The rats have got your flour
Bad blood it got your mare
The rats have got your flour
Bad blood it got your mare
If there's anyone that knows
Is there anyone that cares?”
Três notas no piano de Nina Simone vão se repetindo e crescendo numa interpretação muito única e pungente da música escrita por Bob Dylan. Os ratos comeram sua farinha, a peste levou sua égua, se há alguém que sabe, existe alguém que se importa? Quando essa música acontece pela segunda vez em Trilha sonora para um golpe de estado já estamos no fim do filme e de algumas coisas já sabemos. Três delas me chamam atenção. Porque estão diretamente relacionadas com a própria celebração do Oscar como um prêmio do “cinema”. Me adianto.
O importante agora são as três coisas, duas delas passam de forma bem rápida pelo filme.
1) William Burden foi durante um tempo presidente do MOMA, o famoso Museu de Arte Moderna de Nova York. William Burden era, também, agente da CIA e um dos acionistas da indústria de minério em Katanga, sul do Congo. Aliás (e acho que isso não está no filme), Burden foi também embaixador dos EUA num lugar muito específico... a Bélgica, sim, ela mesma, a perversa e sádica colônia do Congo.
2) Gualtiero Jacopetti foi um diretor de cinema italiano que passou um tempo filmando em território africano, sendo o Congo um deles. Há um rápido depoimento no filme de um mercenário alemão, orgulhosamente nazista, elogiando Jacopetti: “um bom diretor de cinema”, um homem que sabia extrair o melhor da imagem do horror. Segundo esse mesmo mercenário, Jacopetti falava: “Escute, há um homem baleado aqui, coloque ele mais pra esquerda, o sol reflete melhor”. O filme de Grimonprez chega a sugerir (e essa foi uma acusação que perseguiu a carreira de Jacopetti) que o diretor/jornalista poderia ter, inclusive, comprado uma ou outra execução por alguns poucos francos congoleses em nome de uma imagem mais... real. Sem tremor. Com a luz certa.
3) Núcleo duro do filme: enquanto a independência do Congo, liderada pela figura de Patrice Lumumba, desestabilizava o projeto colonial belga-estadunidense em manter total controle do território, particularmente em função da abundância de urânio na região (minério fundamental na disputa nuclear uma vez que é a base da bomba atômica), artistas negros estadunidenses do jazz e do blues como a própria Nina Simone, Louis Armstrong e Dizzy Gillespie eram secretamente usados pela CIA como embaixadores da música em territórios africanos, tais como o próprio Congo. Sem saberem de todos os movimentos políticos que estavam sendo jogados, referências absolutas da música eram manipuladas por acordos entre os ratos de sempre. Se há alguém que sabe, existe alguém que se importa?
I’ll be there / Me too/ That’s right.
Estarei lá / Eu também / É isso aí.
See you, sister / See you at the UN /8:30 on Friday.
Te vejo, irmã / Te vejo na ONU / 8: 30 na Sexta.
É um diálogo, parte dele de autoria da poeta Maya Angelou, uma das pessoas que tomou a plenária das Nações Unidas naquela sexta-feira, em protesto pelo planejado assassinato – com total conivência da ONU – de Patrice Lumumba. Mas cada uma dessas frases é, aqui, a batida das baquetas de Max Roach. Numa famosa performance dele ao lado da cantora Abbey Lincoln. Famosa porque política, porque grito aberto de dor. A ponto de conseguirmos ler as frases com o coração agitado pela dissonância do que escutamos.
Trilha sonora para um golpe de estado é um excelente exemplo de algo que o cinema documental vem explorando nos últimos anos, de posse dos chamados arquivos oficiais e de, como, a partir deles, é possível criar uma linguagem contra-arquivística, no descompasso, no contratempo, na dissonância, na síncope da História.
É a partir dessa produção contra-arquivística que estamos diante de um filme muito ciente dos modos como o colonialismo cria formas perversas para usar instituições culturais ou, no limite do mau-caratismo, a própria ideia de arte, como escudos morais para o seu empreendimento violento.
Em que medida o Oscar, uma premiação historicamente orientada para o mercado, consegue segurar um discurso no palco caso um desses filmes seja premiado? Em que medida esse discurso, interrompido ou não, não funcionaria perfeitamente como a prova de estarmos diante de uma instituição realmente preocupada com cinema? São todas questões retóricas. Sou cética demais para elaborar as respostas. Existem diretores, produtores, atrizes e atores sionistas o suficiente na premiação do Oscar para que eu possa elaborar uma resposta.
O empreendimento colonial em busca do controle do gás natural e do petróleo da região da Palestina, do urânio e, hoje, do cobalto do Congo, me contam que, como disse Jane Fonda há poucos dias, “estamos em nosso momento documental”. Fonda, importante ativista durante boa parte de sua vida, mas ainda assim “amiga” de Israel em vários momentos de sua carreira, falava ali especificamente dos Estados Unidos. Vou me dar ao luxo de fazer o exercício profético daquele rapaz haitiano viajante do tempo: os EUA pouco importam, já eram, já foram. Mas não se preocupem: o capitalismo vai achar outras formas de parasitar a humanidade. E com isso achar também maneiras de financiar a arte na condição de estabelecer o controle de até onde ela pode ir.
Maya Angelou e vários outros intelectuais negros que viram o que estavam acontecendo no Congo romperam, com seus corpos, uma assembleia da ONU. Porque os artistas e todas as pessoas com pulsão de desejo conseguem, sim, romper. Nas ruas, a comunidade grita. Precisamos reaprender a tremer com as imagens que tremem.
Kolela ya mbisi na kati ya mai, emonanaka?
Quando um peixe chora dentro d'água, você percebe?
A questão posta pelo escritor congolês Koli Bofane, presente no filme de Grimonprez, me tira do eixo. Até onde conseguimos, de fato, ver aquilo que olhamos?
Patrice Lumumba fala em liberdade. Pessoas gritam em protesto. Abbey Lincoln canta em luta.
Carol, eu te amo.
Você é foda!
Vc escreve muito bem :)