Perto de fazer 88 anos, a visita do diretor que se tornaria amigo.
A voz é firme como árvore, o sorriso se abre em terra úmida e o olhar é o lusco-fusco de um dia que se deita no horizonte, cansado, porém perseverante. Na visita inesperada de Eduardo Coutinho, quase 30 anos depois do filme que a colocou no mapa das principais referências na luta pelo direito à terra, Dona Elizabeth Teixeira avisa que seus 88 anos estão chegando. Coutinho lamenta: “devia ter trazido um presente”. Mais adiante, no filme-carta, filme-encontro, filme que não é filme, Coutinho pede pra Elizabeth ler um pequeno texto.
É a transcrição de uma parte do discurso final que ela mesma, décadas antes, fala pra Coutinho quando a equipe de filmagem de Cabra marcado pra morrer já está indo embora no carro. “Tem que lutar”, dizia Elizabeth nos anos 1980. No reencontro de vários anos depois, Coutinho pergunta se ela ainda acredita naquilo tudo. A resposta vem como uma interpelação à História: “Acredito. João Pedro dizia que iam tirar a vida dele, mas que a reforma agrária ia ser implantada nesse país. Quantos anos do assassinato de João Pedro? E a reforma agrária ainda não foi implantada em nosso país!”
Dona Elizabeth Teixeira está completando 100 anos neste dia 13 de fevereiro. Sim, a Reforma Agrária ainda não foi implantada em nosso país, mas não quero que este texto seja somente um extrato do que não conseguimos coletivamente. Em tributo ao centenário dessa mulher de luta, “marcada para viver” (como diz o título de uma exposição que será aberta esta semana em Sapé), mulher cujo nome devia ser sempre lido em voz alta, prefiro pensar numa combinação de versos, imagens, horizontes, mas também de memórias difíceis que não podem ser apagadas (porque existe sim um projeto de apagamento) que nos lembrem que essas palavras cujo som parece vir do fundo de um tempo perdido – reforma agrária – precisam voltar a ecoar com o peso que lhe é devido.
Perto de fazer 88 anos, também está hoje o poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
Lá atrás, ele já escreveu sobre Elizabeth Teixeira. Minto, escreveu na verdade um poema para seu marido, João Pedro Teixeira, fundador da Liga de Sapé, assassinado em 1962 pelos ‘donos de terra’. Ele não era o primeiro poeta a escrever sobre João Pedro.
Ferreira Gullar, no ano da morte do líder camponês, fez o poema que daria título ao filme de Coutinho: “João Boa-Morte, cabra marcado pra morrer”. A personagem de Elizabeth, no lindo cordel de Gullar, é uma Maria genérica, sem as camadas que só a obra de Coutinho iria nos oferecer, anos depois. No entanto, Affonso Romano de Sant'Anna, quando escreve sobre João Pedro, também escreve sobre Elizabeth:
3.
“Cantou o galo uma vez
e Pedro foi de emboscada.
Se escurecia
noite adentro
sobre seu corpo
jorrando sangue.
Cantou o galo outra vez
e o filho sangrou-se à bala.
Menino-ovelha
adubo verde,
sangue fresco
em plantação.
Ronda o galo a casa aberta
de Pedro Teixeira morto.
Uma viúva e seus filhos
se espreitam na madrugada
que amanhece em sangue e brasa.
4.
Vai a noite
alta é
uma viúva em seu leito
arde desejos de sangue.
— Mulher, por que morreu teu marido
com o corpo ferido?
— Moço, morreu ferido pelo inimigo
porque sabia do seu caminho.
— Mulher, por que feriram teu filho
na estrada de teu marido?
— Moço, feriram o menino
porque seguia o caminho
que vamos todos seguindo.
Desce o dia
longo é.
Uma viúva
ouvindo a voz do marido:
‘Vai mulher
que a luta é’
desperta seus companheiros
e sai com a alba pelos campos.”
Na última estrofe do poema, o poeta escreve que João Pedro Teixeira é pedra e, sobre ela, “levanto esta bandeira”. Penso em Dona Elizabeth, seus 100 anos, toda a festa na cidade de Sapé, na Paraíba, e volto à imagem da árvore. A imagino se ramificando em vários galhos fortes que ostentam folhagens robustas onde os pássaros repousam. Ou talvez, quem sabe, posso imaginá-la também como palmeira, mais especificamente como uma macaúba que sobrevive ao projeto de destruição do projeto ‘agro-é-pop™’.
ASMA, por
Releitura de um poema famoso
“Essa terra tinha macaúbas,
Onde cantavam o vira-folhas, o tiriba-de-peito-cinza,
o carubé pernambucano
A choquinha-de-alagoas, o gavião-gato,
Hoje extintos ou ameaçados.
Nosso céu tem mais estrelas?
Não as vejo com a fumaça.
Nossos bosques? Desmatados,
Pro fabrico de cachaça.
Vou chiar, sozinha, à noite,
Morrendo de falta de ar,
Pois essa terra é latifúndio,
Infinito canaviá.
Ilegais são as coivaras,
E a fumaça é de lascar;
Vou chiar – do dia à noite –
Morrendo de falta de ar
Pois essa terra é latifúndio,
Infinito canaviá.
Não permita Deus que eu morra,
Antes que a zona volte a ser mata;
Para que desfrute dos primores
Sem usar bombinha de asma
E volte a ver as macaúbas
Onde houve a reforma agrária.”
Pensar, escrever, falar de Dona Elizabeth Teixeira e o legado de suas ações – porque sim, ela também foi uma ativa participante na organização da Liga de Sapé – é falar da batalha mais importante da humanidade hoje: a luta pelo direito à terra.
Enumere todas as questões centrais na falência do capitalismo:
· Imigração
· aquecimento global
· pandemias
· genocídios hipervisíveis de povos originários (entre eles, os Yanomami, os Guarani-Kaiowá, os palestinos e tantos outros)
Tudo isso, absolutamente TUDO, está diretamente conectado com a luta pelo direito à terra e sua preservação por quem dela sabe cuidar.
Uma imagem importante me vem à cabeça: de um filme, curta-metragem, muito bonito e sincero chamado Terra para toda essa gente, filmado por Christian Gilioti e feito coletivamente com um assentamento do MST em Itapetininga, São Paulo. O nome do assentamento? Carlos Lamarca. Selecionamos esse filme para o Forumdoc em 2024. Lamarca é um ponto de conexão muito importante entre a Palestina e a luta por reforma agrária no Brasil.
Em 1962, no mesmo ano que João Pedro foi assassinado e Elizabeth se viu sozinha com 11 filhos pra cuidar, Lamarca estava chegando à Gaza, Palestina, como membro das forças de paz da ONU. Voltou ao Brasil 18 meses depois completamente transformado.
A experiência em Gaza criou um elo importante entre esse então oficial do exército e as lutas por reformas de base, como é a reforma agrária. Com o golpe militar de 64, Lamarca muito rapidamente vai se ver na clandestinidade e passa a atuar contra o regime. Morreu em 1971, executado pelo exército brasileiro. Vários anos depois, seu nome batizou esse assentamento do MST no interior de São Paulo. O filme de que falo resgata um pouco dessa história e traz como protagonista mulheres do assentamento que ficaram conhecidas por encenar a peça Fazendeiros e Posseiros, baseada no texto de Horácios e Curiácios, de Brecht.
É fundamental lembrar que, na mesma semana do centenário de Elizabeth Teixeira, completam-se 20 anos do assassinato de Dorothy Stang, mais uma mulher que lutou pelo direito à terra, nesse caso em território amazônico, e foi assassinada a mando dos fazendeiros e latifundiários de sempre.
É fundamental lembrar que, na mesma semana do centenário de Elizabeth Teixeira, completam-se 3 anos do assassinato do menino Jonatas, uma criança de 9 anos de idade, filho de um líder rural que já vinha sendo ameaçado de morte na região de Barreiros, Pernambuco, em função de “conflitos” agrários. “Conflitos” aqui entre aspas porque sabemos que, assim como no discurso ocidental sobre a Palestina, a palavra conflito presume uma equivalência de forças que nunca houve.
O que existe de um lado é o povo lutando por sua terra diante de processos coloniais.
Do outro, bem, do outro lado, “quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”. Urubu vem em forma de bala, de mísseis, de fósforo branco. Sempre branco.
Vejo a famosa foto de Elizabeth e seu filhos pouco após a morte de João Pedro. Nos meus exercícios warburguianos de coletar imagens com vibrações semelhantes, vejo também uma das imagens do maravilhoso acervo do The Palestinian Museum Digital Archive, em que uma mulher, em 1989, posa ao lado dos filhos. Uma das crianças segura a foto do pai, preso por Israel.
E inevitavelmente lembro dos versos do grande poeta palestino Mahmoud Darwish:
Bilhete de identidade
Toma nota!
Sou árabe
O número do meu bilhete de identidade: cinquenta mil
Número de filhos: oito
E o nono… chegará depois do verão!
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira com os meus companheiros de fadiga
E tenho oito filhos
O seu pedaço de pão
As suas roupas, os seus cadernos
Arranco-os dos rochedos…
E não venho mendigar à tua porta
Nem me encolho no átrio do teu palácio.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Sou o meu nome próprio – sem apelido
Infinitamente paciente num país onde todos
Vivem sobre as brasas da raiva.
As minhas raízes…
Foram lançadas antes do nascimento do tempo
Antes da efusão do que é duradouro
Antes do cipreste e da oliveira
Antes da eclosão da erva
O meu pai… é de uma família de lavradores
Nada tem a ver com as pessoas notáveis
O meu avô era camponês – um ser
Sem valor – nem ascendência.
A minha casa, uma cabana de guarda
Feita de troncos e ramos
Eis o que eu sou – Agrada-te?
Sou o meu nome próprio – sem apelido!
Toma nota!
Sou árabe
Os meus cabelos… da cor do carvão
Os meus olhos… da cor do café
Sinais particulares:
Na cabeça uma kufia com o cordão bem apertado
E a palma da minha mão é dura como uma pedra
… esfola quem a aperta
A minha morada:
Sou de uma aldeia isolada…
Onde as ruas já não têm nomes
E todos os homens… trabalham no campo e na pedreira.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Tu saqueaste as vinhas dos meus pais
E a terra que eu cultivava
Eu e os meus filhos
Levaste-nos tudo excepto
Estas rochas
Para a sobrevivência dos meus netos
Mas o vosso governo vai também apoderar-se delas
… ao que dizem!
… Então
Toma nota!
Ao alto da primeira página
Eu não odeio os homens
E não ataco ninguém mas
Se tiver fome
Comerei a carne de quem violou os meus direitos
Cuidado! Cuidado
Com a minha fome e com a minha raiva!
(1964)
[Tradução de Júlio de Magalhães]
Ser árabe, ser Elizabeth Teixeira, ser alguém com fome, e com raiva. Precisamos ser. Um pouco disso tudo. Para viver.
Coisa boa vê-la lembrada aqui! Uma grande heroína, merece todo tipo de homenagem.
Viva Elizabeth!